The Fall
(BBC Irlanda – 2013-2016. Criada por Alan Cubitt)
Não gosto de histórias de serial killer (sk), pois, via de regra, elas se perdem na estetização da crueldade. Mas, como fiel eXcer, sigo Mulder e Scully em quaisquer de seus papéis pós-Arquivo-X (meus iguais pegarão as referências arquivoxivescas que espalho por aqui…). É essa minha desculpa para escrever sobre The Fall, que também me interessa em sua convincente representação do Duplo na natureza humana, uma obsessão de longa data
A série de Cubitt supera a média dos shows de sk, ainda que Tolstói, se vivesse, protestaria contra a incapacidade desse gênero televisivo em nos tornar melhores pessoas. “The fall” conversa diretamente com as mulheres que nos viramos sozinhas, sem a ‘proteção’ moral ou física de um homem. Nessa linha, é protagonizada por Paul Spector (Jamie Dorman), um estrangulador pai de família, ab-so-lu-ta-men-te lin-do, que enfeita os diários de seus homicídios com desenhos de suas vítimas torturadas, salpicados por citações de Nietzsche e Dostoiévski. Paul protege E ameaça: à luz do dia, é uma espécie de psicólogo (‘conselheiro de luto’) junto ao sistema de saúde de Belfast. Mas sob seu disfarce; ocultos na superfície do seu corpo; roçados pelo utilitarismo dos cuidados cotidianos, agitam-se impulsos violentos e complexos que afloram quando a noite cai. A verdade está lá fora, mas, às vezes, esconde-se mais a fundo, como parece anunciar a psicologia da série de Alan Cubitt, onde a única luz – como já disse uma jornalista na Vanity Fair – parece emanar dos cabelos de Stella (Gillian Anderson, antiga Scully), a detetive que está na sua cola. “The fall” tem várias camadas de sentido e ainda pelejo para interpretá-las a contento.
A série engaja o público em mostrar o que – e porque – Spector faz o que faz, como o faz, e se será pego ou não. Menino criado em abrigos estatais ou clericais, forçado a se defender sozinho da perversidade extrema de um padre abusador, Paul mimetiza com maestria as convenções sociais que não o protegeram. Ele confiaria em ninguém… Mas faz parte de seu show capturar a atenção de Stella. Spector, o killer, é um Beautiful Strangler (adapto o título daquela velha canção da Madonna) – e também um desafio à altura da superintendente super-detetiva. Pensem nela como uma Scully chique, bissexual, que curte night stands com colegas de trabalho. Por aí caminham todas as coisas.
Falível e mortal, Stella é mais humana, menos idealizada, do que Scully. A mulher liberada que liberta as suas iguais. “The Fall” inspirou Fiona Apple a compor a canção “Fetch the bolt cutters” (“Pegue os alicates”), pois Stella, a-miga valente, vai te salvar. A montagem alternada e os lentos travellings criam um suspense enervante, ao exibir, em sequência, os atos banais ou brutais do deus grego que cuida de algumas mulheres, mas estrangula outras. Deus por deus, Apolo não fez por menos, ao amaldiçoar Cassandra. A beleza de Dorman parece emprestar verdade à crença de Paul em sua própria superioridade, bem como à sobre-humana arbitrariedade de seu desejo.
Stella sustenta uma visada feminista aos crimes contra as mulheres. Sensível, empática, racional, mas também, controlada e forte nos momentos de crise. Seu adversário é modelado, talvez, na falsidade dos personagens de westerns, do homem que dissimula sua força sob o manto de um pesado laconismo. Outro bom personagem é Jim Burns, o policial alcoolista. Em uma das melhores cenas da série, Stella, a paixão de Burns, confronta-o. “Você me observa como se eu fosse essa garrafa de uísque… Com uma mistura de medo e raiva”. “The fall” traz retratos de uma masculinidade pendular, oscilante entre a fragilidade e a violência, em oposição ao feminino que se defende, se reconhece e se afirma.
A detetive espia pelas frestas da sexualidade desviante de Paul para, gradualmente, nela mergulhar. Stella assume o papel de voyeur que era dele, o Espectador. Essa troca de sujeito e objeto na dinâmica do que a psicanálise chama de pulsão escópica se repete no apelo atávico a um abraço nas trevas – um salto no precipício representado pela intimidade da morte. É o fascínio de Paul: assistir a morte das mulheres. Se Stella desistisse, ele venceria. Somos convocados a compartilhar da solidão dessas duas figuras, que lidam com seus próprios traumas psicossociais de forma tão solitária quanto antagônica, e representando caminhos culturais tão diferentes no que se refere às ideias e valores sobre sexualidade.
O horror representado por Paul se atenua pela sua história de negligência; ele é abandonado ao seu mundo, onde os homens não falam de suas penas, onde não dão sentido à própria dor, e sua única conversa é com a interpretação torta disponível na cultura sadiana que traz familiaridade à crueldade vivenciada em sua infância.
Cair em Cubitt ou subir em Tolstói? Twin Peaks, parece-me, tinha mais a dizer sobre o mundo bizarro dos corpos dos cidadãos de bem, embora não apontasse o caminho de saída do zoológico das taras representadas.
Como a série de David Lynch, “The fall” retrata a briga feia do gênero humano contra o lado perverso de sua própria sexualidade. A lentidão da cinematografia parece ajustada a esse universo em que a imagem, mais do que vista, é degustada. Ao invés da habitual autoflagelação associada à sua “sexualidade desviante”, como a nomeia Stella, Paul abraça a liberdade negativa da tortura, em que vermelho e negro se confundem nos desenhos escuros, a carvão, temperados com as tintas cor de sangue.
Sente-se na série um pouco do universo animalesco de Paul Verhoeven, embora sem descambar para o niilismo. Se assim fosse, a trama se reduziria ao mundo de Spector, que abraçou sem questionamento, nem interlocutor, a ilusão enfermiça de Raskholnikov (de Crime e Castigo, um de seus livros favoritos), ilusão de um mundo no qual não haja punições para os homens extraordinários, superiores aos demais covardes animais de rebanho.
De algum modo, o paralelismo da montagem parece aproximar Paul dos outros personagens. Ele não difere tanto dos ‘normais’. Spector apenas abraça uma queda vertiginosa no precipício infinito de sua própria compulsão. Podemos lembrar que também Burns não evita a garrafa. Que Stella sofre repetidamente a perda de seu pai. Sem albergar a crítica contra-hegemônica das cinco primeiras temporadas de Arquivo-X; limitada, é verdade, pelo simplismo e maniqueísmo do feminismo liberal, The fall eleva-se por sobre o mundo desesperançado da vontade de potência por obra do talento de Gillian em dar forma a heroínas fortes e racionalistas, sempre em sintonia com as mulheres de seu tempo, mostrando que, embora quedas existam, ascensões estão a caminho. Ou é nisso que queremos acreditar.
Por Gisele Toassa para A Casa de Vidro
Goiânia, 24/08/2024
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Excer de plantão, digam aí quais referências vocês pegaram…depois te classifico em nível Scully: eXcelente; Tunguska: você está indo bem; Duane Barry: putz, vc não passou da segunda temporada, hein?; Zero Sum: tudo o que você viu foi o pôster…
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Publicado em: 24/08/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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